A Primeira Vítima

 A Ucrânia existe como Estado soberano há trinta anos. Não é muito tempo, o espaço de uma geração. O que era antes?
Simplificando, alvo de disputas entre poloneses, russos, cossacos e etnias locais  com tiranetes regionais.
Em Brest Litowski e na guerra que lhe sucedeu, sob a égide dos ventos da revolução russa de 1917,formou-se a República Socialista da Ucrânia, integrante da federação conhecida como União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS -  um ano após.

O processo de industrialização da Ucrânia na década de 30 foi acompanhado de uma escravização do campesinato promovida por Stalin. Com a obrigação de produzir em fazendas coletivas e sem direito ao consumo dos bens produzidos enquanto não fossem atingidas as quotas, no mais das vezes escorchantes como as taxas de juros no Brasil de hoje e que também são fator de escravização, estima-se que de quatro a seis milhões de camponeses tenham morrido por inanição ou repressão. Episódio conhecido como Holomodor.

A invasão da Alemanha nazista, recebida como libertadora da tirania stalinista, rapidamente se transformou no maior algoz e provocou, estimativamente, cinco milhões de mortes civis, seja por deportação e trabalhos forçados, fome, repressão, e genocídios, propriamente ditos, de ciganos e judeus.
Nos cerca de onze milhões de soldados soviéticos mortos na chamada Guerra Patriótica, em torno de dois milhões e meio foram de tropas ucranianas.
Um ucraniano étnico, Nikita Kruschov, no comando da URSS na década de 50, delimitou um território para a Ucrânia, fruto do rearranjo das fronteiras pós IIGG. Posteriormente foi cedida a Criméia, dependente do fornecimento de água pela RSU.

Com as grandes transformações do pós-guerra e a falência da hegemonia bipolar, em que o padrão de consumo de muitos assumiu importância maior do que o sustento a todos, tão bem marcado pela queda do Muro de Berlin, o modelo federativo soviético inviabilizou-se e, com os aplausos e incentivos estadunidenses, esfacelou-se. E as então republicas federadas constituíram-se Estados independentes. 
Havia a condição negociada em 1994 de que o arsenal nuclear, distribuído entre as ex-repúblicas soviéticas, ficariam sob a posse e guarda da Rússia e que a OTAN, criada no ambiente da Guerra Fria no mundo bipolar e que encontrou contrapartida no chamado Pacto de Varsóvia, não avançaria para as novas repúblicas recém criadas (segundo as palavras de Gorbachov, nenhuma polegada a mais).
Um acordo tácito, que, como costuma acontecer, foi descumprido e restando a Ucrânia, e Belarus como últimos bastiões. Quatorze ex-repúblicas soviéticas já foram adicionadas à OTAN, numa flagrante ocupação de espaços e expansão de influência territorial.
Um detalhe muito interessante.
Quando da formulação da OTAN, idealizada por Churchill e Lord Ismay, que veio a ser seu primeiro Secretário Geral, este definiu com clareza o objetivo da Organização:
"Manter os americanos dentro, a Rússia fora, a Alemanha abaixo." Poucas coisas foram até hoje definidas tão precisamente.

Após o fim da URSS e o redesenho das fronteiras, teve início a um período que até se pode chamar de Pax Americanae, em tudo similar à de Augusto Otávio. Sendo assim, num mundo monopolar, perderia a razão de existir uma organização para  "defesa" de uma parte. As aspas justificam-se pela constatação de que simplesmente a OTAN, manejada pelos USA, é utilizada como uma força policial para garantir os interesses estadunidenses, em primeiro lugar, e os subsidiários europeus, à margem da ONU.

No discurso de 1 de março, Biden, a pretexto de justificar as represálias econômicas contra a Rússia, declarou que os "interesses estadunidenses e do mundo serão defendidos". E complementou, "os americanos resolvem".
Seria patético se não saísse na boca do presidente da maior potência mundial, não mais hegemônica no entanto. https://youtu.be/U01VzY6erUk
Distingue os interesses dos Estados Unidos dos do restante do mundo, priorizando àqueles. E não tem pudor do ufanismo de que eles resolvem. Como resolveram na Coréia, Vietname, Líbia, Iraque, Síria, Afeganistão, sem considerar as menores intervenções militares aqui e acolá mundo afora.
Em todas intervenções, retumbantes fracassos sócio-humanitários. Em boa parte delas, também fracassos militares.
A emergência como potência dominante, status adquiridos após a IIGG e com uma Europa destruída, fez mal ao mundo também. No mundo, incluídos os estadunidenses.
Arvoram-se em polícia do mundo e, mantida a arrogância e supremacismo, essa condição somente será alterada por uma guerra de proporções apocalípticas, em que no mínimo 2/3 da humanidade terá morrido em até cinco anos após o conflito, que durará menos de uma hora.

Enquanto isso a mentira grassa, tenta convencer, formar uma opinião pública que ignore que o atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia tem antecedentes factuais e históricos. E que um passo atrás da OTAN teria evitado toda essa confusão.
Mas não, Biden, vendo sua popularidade despencar de um precipício em ano de eleição intermediária, repete a receita que há cinquenta anos tem dado resultado na política estadunidense: arruma uma guerra.

Tem razão a Rússia em se proteger do contato fronteiriço com uma entidade hostil e perigosa. Tem razão Putin em não permitir o massacre de seus cidadãos étnicos derivados de um processo recente de independência.
Por muito menos o Brasil invadiu o Uruguay e depôs seu presidente em 1864, uma situação muito semelhante.

Só que dessa vez, se escalar como parece ser a intenção de Biden, decadente e ultrapassado, é nuclear.
E, com a verdade, sempre a primeira vítima, morrerão bilhões de pessoas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cinismo ou Hipocrisia Raiz?

País Hoje, Colônia Amanhã.

Síndrome de Rambo